sábado, 26 de abril de 2008

# IX - Herdeiras

Arrepiado com a brisa de Outono ainda distante, José apertou o casaco à volta do pescoço, atirando com uma pequena gargalhada as pernas magras para acompanhar o passo rápido de Isabel.
"Por acaso lembrar a Ana por aquele truque da borracha foi uma boa ideia José."
"Encaixa-se nas coisas bizarras do dia. Foi a primeira coisa de que me lembrei. Achas que elas caíram?"
Isabel estacou, indecisa. Optou pelo beco mais escuro à esquerda, retomando o passo rápido.
"Não sei. Mas garanto-te que nos estavam a ouvir. Preocupou-me a cara daquela mais pintada quando me perguntaste pelo anel. E, depois, houve definitivamente um comentário quando olhaste para a fotografia da Belleville. Ainda bem que percebeste a tempo que não podiamos continuar com a conversa ali."
"Ainda me falta explicares onde arranjaste esse anel e porquê a Ana. O que é que ela tem a ver com isto?"
"Avisa a Ana que estamos a chegar. Só espero que esteja em casa."
"Mas o anel..."
"Aqui não. As velhas vêm mesmo atrás de nós."
Isabel apontou levemente para o espelho de um carro ali estacionado. Lá ao fundo, claramente recortadas, distinguiam-se apressadas as duas figuras de que desconfiaram, uma mais alta, seca, coxeando um pouco e a outra, baixa e redonda, de passinhos curtos. José desviou os olhos do telemóvel, espreitando também.
Quase a correr, Isabel e José chegaram finalmente à porta de Ana, que já os esperava. Já da sala, os três empurraram-se para espreitar pelo vidro. Primeiro as sombras - já compridas pelo entardecer, depois as duas figuras chegaram à rua a arquejar. Olharam em volta ("estão à nossa procura", murmurou José) e depois de uma breve discussão onde a mais alta apontou o dedo comprido para a porta de Ana ("oh não"), continuaram, de passo mais lento e em silêncio ("desistiram", soprou Isabel).
José, dirigiu-se para o seu lugar habitual no velho e confortável sofá azul de Ana, enterrando-se e suspirando antes de olhar para Ana e Isabel.
"Afinal, o que é que se passa aqui? Onde é que arranjaste esse anel? Porquê procurarmos a Ana para saber o que me aconteceu? O que é que sabem sobre Belleville e porque é que me vi no meio disto?"

domingo, 30 de março de 2008

# VIII - O Anel

- Qual anel? - Isabel não sabia o que dizer. Era um anel normalíssimo.
- Esse mesmo! - José agarrou na sua mão e olhou fixamente o anel. Tinha gravuras, runas ou lá o que eram.
- Este anel é meu! Foi a minha avó que mo deu. Acho que o comprou numa loja da baixa ou coisa assim...
- Ok, estou a ver... - José pousou o queixo na mão e deixou-se ficar com um ar pensativo. Aquele anel lembrava-lhe algo, só não sabia o quê. Olhou então para a fotografia que levara. BelleVille tinha algo refulgente na mão. Um anel. E... porra pah! Porque é que tinha de estar tão desfocado? Mas poderia ser!!! Ou talvez não! Ou então sim!
- Achas que é o dela não é? - Isabel olhou para a foto e ficou com um sorriso estranho.
- O que foi? - perguntou José, o seu sorriso vindo também do nada. - Já... será que ela se lembra?
- Ela está-nos a dever uma... - o sorriso de Isabel aumentava de minuto para minuto, um sorriso perverso, espelhado também na cara de José. - Achas que ela consegue fazer isso?
- A Ana? Desde que a vi a levitar aquela borracha na aula que já acho que ela pode tudo.
- E convém descobrir como foste parar àquele jardim, portanto vamos andando.
Pegaram os dois nas suas coisas e levantaram-se.
Um risinho estranho emergiu então do café, mas no ruído que se sobrepunha, nenhum dos dois deu por ele: as duas velhotas riam enquanto observavam a partida dos jovens.
- Eles vão descobrir da pior maneira... - disse uma delas com ar satisfeito.
- Mas isso não interessa. Deixa-os estar... Quando descobrirem, vão para os dois directamente ao mal que ambos causaram! Vai ser divertido ter vingança... finalmente!

sábado, 2 de fevereiro de 2008

# VII - Poirot Precisa-se

"Explica de novo."
"Foi há duas noites. Acordei em pijama num dos caminhos do jardim da mansão."
"E não sabes como foste lá parar?"
"Não faço ideia. Nunca fui sonâmbulo. Mas lembro-me de sonhar, lembro-me que estava dentro da mansão."
"Talvez tenhas estado mesmo, talvez não fosse um sonho."
"Tinha de ser. Não estava em ruínas, havia candeeiros acesos, quadros nas paredes e vozes e ruídos de talheres na direcção da sala grande."
"E depois?"
"Depois, acordei no jardim, já te disse. Daí, fui para casa. Só quando cheguei a casa é que reparei na fotografia que tinha no bolso. Esta."
José passou-lhe para as mãos uma imagem amarelada e antiga, de um grupo de cinco pessoas que sorria em frente à Mansão, a assombrada Ville Belleville.
"Tens a certeza que não encontraste isto no jardim?"
José impacientou-se.
"TENHO!" As duas velhotas que bebiam chá na mesa ao lado olharam-no perturbadas. José baixou a voz, irritado.
"Mil vezes, tenho. Quantas vezes fomos à Mansão à procura de fantasmas?"
"Todos os miúdos fizeram isso, nós só..."
"Alguma vez encontramos fotografias antigas espalhadas pelo jardim? Nem na casa, porquê no jardim? Ouve. Ontem fui à livraria, trouxe uns livros sobre Belleville. Ao que parece, Ville Belleville foi abandonada nos anos quarenta, depois de um violento incêndio. Ninguém sabe como o incêndio começou. Não houve mortos nem feridos. Na casa estavam dez pessoas, cinco convidados e os criados, mas nenhum dos livros fala em nomes, para além da dona, a Belleville. Cinco pessoas! Esta foto, cinco pessoas. Percebes agora?"
"Sim. Então e isso..."
"Isto" repetiu José desdobrando o pedaço de jornal, tão velho que parecia desfazer-se."Isto, vinha embrulhado num tijolo da Mansão que aterrou na minha sala esta madrugada. Repara. É a Belleville, é a notícia do incêndio. Agora, compara com a foto. Esta Belleville do jornal é a mesma que aparece nesta foto, aqui no meio. Mais nova, sem dúvida, mas é a mesma pessoa."
"Mas quem podia saber o que te tinha acontecido? O que tens tu a ver com o incêndio?"
"Não sei, eu..." José estacou, com a boca aberta num trejeito ligeiramente estúpido. "Onde é que arranjaste esse anel?"

domingo, 27 de janeiro de 2008

# VI - Certo, Errado, ou Assim Assim?

A imagem no jornal fez José arregalar os olhos. Uma bela mulher de cabelos ondulados parecia flutuar em frente a uma casa destruída por aquilo que parecia ter sido um incêndio. Tirando os olhos da fotografia (e também dos seios da mulher...), José começou a ler a notícia intitulada "Ville Belleville - A Mansão Ardida":

Ardeu! Simplesmente ardeu! A Mansão da Senhora Belleville ardeu com todo o seu rico recheio lá dentro. Estávamos todos a jantar e algo começou a arder, explica Mrs. Belleville, Não sabemos o que foi... mas agora não temos nada... rigorosamente nada. Por entre as lágrimas, vê-se o desespero de uma das mulheres que era considerada a mais rica e delicada do nosso país. Não deixa de se sentir uma certa nostalgia ao ver Ville Belleville arrasada pelo fogo. Aquela que antes fora uma Mansão senhorial bela, que nos levava a pensar nos tempos em que reis e rainhas por aqui circulavam, é agora um amontoado de cinza e pedra carbonizada... desesperemos, por perder uma das mais belas maravilhas do mundo: Ville Belleville - A Mansão Ardida.

José olhou perplexo para a imagem da casa ardida. Parecia realmente que tinha sido uma belíssima mansão senhorial... e estava completamente destruída. E a mulher, Mrs. Belleville... a tristeza que lhe ia no olhar, aqueles peitos...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

#V - Ville Belleville

José acordou assustado agarrado à cicatriz em forma de relampâgo que tinha na testa. A tia Petúnia estava a bater nas escadas, chamando-o para o pequeno almoço. Os pais tinham morrido num acidente de automóvel...

José acordou assustado, caindo da sofá, onde adormecera a ler. A história do casarão Ville Belleville deixara-o exausto. Instintivamente levou a mão à testa. Não sangrava, nem tinha nenhuma marca aparente. Espreguiçando-se e estalando, José apagou a televisão e levantou-se. Tinha fome.
Subitamente ("como sempre", resmungou José) algo despertou a sua atenção. A janela da sala espalhava-se em pedaços afiados pelo chão. Varreu com os olhos a sala, à procura de qualquer coisa que explicasse o vidro partido. Não teve de procurar muito. Junto à janela, estava um tijolo embrulhado numa folha de jornal. José desembrulhou-o.
O tijolo era normalíssimo, à excepção de um pequeno padrão de ondas que o atravessava ("será...Ville Belleville?"). Mas o jornal, o jornal despertou-o definitivamente (mais do que o vidro que acabara de pisar). Era de Agosto de 1939.

# IV - Uma noite e um sonho

Pois como quem diz que coiso, José teve a belíssima ideia de ir ler assim que chegou a casa, ainda transtornado pelo encontro de primeiro grau com dois monstros: um sapo e um macaco. Tudo isso num fim de tarde que deveria ser normal, não fosse aquela porcaria de situação em que se metera.
Voltando à leitura, deu por si numa parte extremamente interessante do texto:

"Ele virou-a com força e pô-la de quatro. Estava tão inebriado pelo cheiro dos corpos que nem se apercebeu que ela lhe cravara a unha nas costas durante a posição anterior..."

Eh pah!!! Não era isto que eu estava a ler!, pensou José. Sabe-se lá como, uma revista pornográfica tinha-lhe ido para às mãos, na parte menos interessante: a da literatura porno!

De repente, um som fê-lo despertar dos seus depravados pensamentos: algo batera na janela com força. José virou-se e esperou para ver se seria apenas da sua imaginação, mas de novo algo bateu na janela. Levantou-se então e dirigiu-se, a medo, da única janela da sua sala. Quando estava quase junto, o objecto bateu de novo na janela, mas desta vez com tanta força que acabou por partir o vidro, embatendo também na cabeça de José, fazendo-o cair para trás agarrado à testa que sangrava.

domingo, 20 de janeiro de 2008

# III - Só se estraga uma casa...

"O anel!" borbulhou a Madame Sapa, mostando os dentes esverdeados num sorriso que fez José encolher-se.
"O anel" assentiu o Sr. Símio, passando o braço sobre os ombros de Madame Sapa num sorriso que lembrou a José um documentário que vira na semana anterior sobre os benefícios da Vitamina C.
"Mas que anel?" sobressaltou-se José.
"O anel. O anel" repetiu a gorda.
"Mas qual anel?" retornou José, exasperado com o sorriso estático do segurança que o fitava feliz.
"Não se lembra?" perguntou o segurança. "Ontem, à noite, aqui? Encontrámo-nos ali junto ao nº21? O amigo garantiu-me que precisava do anel, que era uma questão de vida ou de morte..."
"Eu...eu...olhe..." gaguejou José "eu não faço ideia do que estão a falar."

Madame Sapa encarou um subitamente sério Sr. Símio num esgar que fez os joelhos de José tremerem. Preparava-se para começar a correr, quando o Sr. Símio voltou ao sorriso que prendeu os olhos arregalados de José à sombra da gorda.

"Bem, então desculpe, é engano."

Voltando-lhe costas, os monstros afastaram-se conversando furiosamente baixinho.
José, confuso, deixou-se ficar ali no meio da estrada cada vez mais escura. Um anel? Encontrara o segurança na noite anterior? Como era possível?